sexta-feira, 20 de agosto de 2010

C.,

Clarice baixa em mim todo dia, mas é toda silêncio, não me diz nada. Na verdade, sinto-me impelida a abrir um livro seu, continuar em silêncio. Sinto-me imbuída de toda sua elegância, que é minha, agora, enquanto leio. Sensual, também. Pois é literatura de captura, literatura de alcova, mas aquela alcova de mil travesseiros, em que estou só. É sensual porque dá vontade de comer, beber, respirar. É sensorial demais, porque vem de dentro. De dentro de mim, que ela conseguiu enxergar de longe. É em espaço que, de tão espaçoso, não cabe aqui dentro, que é seu lugar. Cai do lado de fora, transborda e vira água-viva, que queima, mas que atrai o toque. É preciso entender de elegância para ler Clarice. De silêncios gritados. Dos nossos lados de dentro do lado de fora. Entender do ovo e seu desenho perfeito, branco. É entender do que só podemos ter se roubado. O que nunca será nosso. O que é nosso e de todos. É partilha involuntária. Felicidade clandestina, que é felicidade cinza, cor-de-burro-quando-foge, clandestina de fugida e de escondida, como no dicionário mesmo. Felicidade não procurada, mas roubada porque achada. Na estante, entre outros livros.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

a guiar

a moça desafiou-o com caminhos diferentes e ele conhecia todos. de bengala e de cachorro em coleira, era ele quem a guiava pelas ruas da sorte, das graças, da amizade. e lhe ensinou tantas coisas que foi ela quem descobriu que não via. a luz a havia cegado mais que a escuridão a ele. ele era todo olhos. se lhes faltavam os olhos da face, os olhos mais primitivos, ele tinha olhos sofisticados era nos ouvidos, nas mãos, nos pés. ele não via, mas sentia com o corpo todo. e essa era sua vantagem.